por Luciano Melo
Such psychic weaklings has Western civilization made of so many of us.
(Assim o fraco intelecto da civilização ocidental tem feito cada um de nós).
Brian Jones, 1967.
Bem vindos aos anos setenta.
Talvez o primeiro contato com o universo que circunda o mais belo disco pop brasileiro dos anos 90 não deva ser propriamente no cd player, mas na última página do encarte. Embaixo de um mesmo amuleto que ilustra a capa do álbum está grafado o mesmo par de frases acima, apontando a tudo que se possa encontrar ao longo de pouco menos de 80 minutos de muita pancadaria, distorções e arranjos de cordas. Metal e nuvens. Neste sentido, a obra torna-se uma leitura pouco entusiasmada do Ocidente numa linha quase cronológica entre o medievalismo do século XIII ao rock progressivo dos anos 70.
Neste caleidoscópio de imagens e referências que o próprio conceito do álbum sugere, a fecundação do disco foi realizada praticamente a partir dos próprios ensaios de estúdio, o que resultou no trabalho mais bem acabado e meticuloso da Legião Urbana. Quase que diariamente, durante oito meses de 1991, enfurnados num estúdio da Barra da Tijuca, o grupo praticamente se exilou do contato com os fãs e compromissos com shows e mídia. Quiçá pela debilidade física já flagrante de Renato Russo, era comum o compositor varar noites em claro entre violões e microfones para não precisar se deslocar tanto e, durante a madrugada, elaborava uma espécie de ópera-rock que caracterizaria a elaboração do álbum. Em relação à concepção das canções, o disco não fugiu à regra de trabalho da banda. Quase sempre Marcelo Bonfá trazia um embrião de melodia que aos poucos ia tomando forma a partir do recheio das letras de Renato Russo. Não era nada muito dispendioso de tempo quando partiam para as primeiras gravações demo e mixagens. No entanto, após a exaustão que consumiu a banda pós-Quatro Estações, era o momento de baixar um pouco a poeira. Renato Russo sabia que uma nova empreitada dificilmente renderia tão bons frutos financeiros e midiáticos como o disco anterior, embora os olhos mercadológicos da Emi-Odeon exigissem o contrário. Mas o grupo (entenda-se Renato Russo) não resistiria a mais uma maratona como havia acabado de passar. Muito menos agora que seu líder padecia com o soropositivo.
Horas e horas de estúdio foram necessárias para a gravação do novo trabalho. As melodias de Bonfá iam tomando forma a partir das intenções que Renato Russo pretendia para uma espécie de linha temporal do álbum. O cristal estava sendo lapidado.
“V” surge como um disco-conceito. A tentativa é promover um álbum que seja ouvido numa única e ininterrupta seqüência, ou seja, uma leitura. Para tanto, a construção de cada faixa requer uma perfeita intimidade entre a palavra e o instrumento. Em todas as onze composições do álbum, o início de cada faixa é absorvido por uma sonoridade que procura ofertar ao ouvinte um ambiente mais próximo possível do universo da letra que virá a seguir. A idéia é que a primeira parte do álbum (Love Song, Metal contra as nuvens, A Ordem dos Templários e Montanha Mágica) seja executada de maneira uníssona num único compasso de bateria e com o mínimo intervalo entre as faixas. Isso fica bem claro no lado A da edição do long play. A segunda parte ( O teatro dos vampiros, Sereníssima, Vento no litoral, O mundo anda tão complicado, L’ Âge D’or e Come share my life) compreende os “anos setenta” da epígrafe acima, entre o progressivo inglês e a acidez punk. Mesmo assim, nesta ponte entre a Idade Média e a contemporaneidade, a canção abre-alas do lado B (O teatro dos vampiros) é introduzida por rifles de guitarra que remetem ao tema barroco do Canon de Johann Pachelbel.
Love Song é a faixa que abre o disco. Alguns ruídos são logo tomados por um órgão crescente que aos poucos assume uma melodia morna e renascentista. Também lentamente vai perdendo espaço até as estocadas do violão elétrico que se manterá por toda a canção. Um conjunto de cordas integra o ambiente medieval da faixa para a letra que virá a seguir:
Pois naci nunca vi Amor
e ouço d’el sempre falar
Pero sei que me quer matar
mais rogarei a mia senhor
que me mostr’ aquel matador
ou que m’ ampare d’el melhor.
O texto é uma cantiga de amor portuguesa de Nuno Fernandes Torneol, trovador da primeira metade do século XIII. Os versos são entoados de maneira imperativa e acompanhados por um coro gregoriano ao fundo. Ao final do recital, surge em seguida um baixo que inaugura uma nova faixa, um segundo andamento. Então uma melodia folk muito simples e bem marcada pela bateria de Marcelo Bonfá parece suscitar o universo melodioso da Legião Urbana na suíte de onze minutos Metal contra as nuvens.
A peça está divido em quatro momentos ou episódios. Quatro universos temáticos amarrados por uma única condição: o transeunte solitário que vê a máquina do mundo passar perante os olhos. Repleto de referências da crise econômica brasileira de meados dos anos 90 ou ponteado de elementos autobiográficos de Renato Russo, os versos ecoam o ambiente medievalista da canção anterior por uma série de vocábulos que remetem ao campo da cavalaria provençal. Na primeira parte, encontramos um viajante desgarrado de qualquer filiação a não ser de certa idealidade que o anima:
Não sou escravo de ninguém
Ninguém é senhor do meu caminho
Se o que devo defender
E por valor eu tenho
E temo o que agora se desfaz
Mas este orgulho de exílio existencial fica apenas no campo da ideologia. No terceto derradeiro desta estância, o cavaleiro retoma o gáudio da terra natal como o mote de bravura e honraria. A alusão à lua e às estrelas pode ser vista reproduzida no interior do amuleto da capa do álbum. Esta ilustração pode ser compreendida como uma espécie de brasão medieval que integra elementos mítico-religiosos e naturais:
Mas minha terra é a terra que é minha
E sempre será minha terra
Tem a lua, tem estrelas e sempre terá.
A sensação de acolhimento à terra natal mesmo sem obedecer a um senhor pelo caminho é transposta de modo virulento para a segunda parte do texto. Em meio a um metal que se contrapõe ao folk cadenciado anterior (as nuvens), Renato Russo incorpora o próprio cavaleiro em solo tupiniquim sob a recessão do governo Fernando Collor de Mello:
Quase acreditei na sua promessa
E o que vejo é fogo e destruição
Perdi a minha sela e a minha espada
Perdi o meu castelo e minha princesa
Quase acreditei, quase acreditei.
E, por honra, se existir verdade
Existem os tolos e existe o ladrão
E há quem se alimente do que é roubo
Vou guardar o meu tesouro
Caso você esteja mentindo.
Olha o sopro do dragão.
A cadência melódica é retomada no fundamental e inédito terceiro bloco, o mais autobiográfico de todos. É a primeira vez que o compositor menciona o flagelo físico pelo qual passava à base que coquetéis para remediar o avanço da Aids no sistema imunológico e as conseqüências traumáticas após um ano ter se declarado homossexual. O fantasma da morte de Cazuza e as semelhanças biográficas com o próprio Renato Russo consumiam o olhar poético do compositor, que nunca fora tão cético como antes:
É a verdade que assombra.
O descaso que condena,
A estupidez o que destrói.
Eu vejo tudo o que se foi
E o que não existe mais.
Tenho os sentidos já dormentes,
O corpo quer, a alma entende.
(...)
Não me entrego sem lutar –
Tenho ainda coração.
Não aprendi a me render:
Que caia o inimigo então.
A derradeira (e quarta) estância parece aproximar o cavaleiro do sublime desfecho da travessia. As cordas que haviam desaparecido após a primeira parte reaparecem em meio à melodia. É uma espécie de redenção do lírico após ver passar, perante os olhos, a condição de sua terra natal ou de sua própria condição. A retomada da vida ou do caminho é sugerida ao final do texto sem nunca olhar para trás – numa reminiscência ao episódio bíblico de Sodoma e Gomorra. Também a melodia parece acompanhar o andamento do enredo. No final, novamente o violão está solitário como quando se iniciaram os primeiros versos. Apenas voz e instrumento executados pelo compositor prontos a recomeçar o caminho.
O recomeço reinveste na temática da cavalaria. A Ordem dos Templários é uma faixa instrumental que relê outra canção medieval, Douce Dame Jolie, de Guillaume de Machaut (século XIV). O disco adquire um clima non sense pós-travessia no inferno da música anterior. A melodia revisita a Idade Média sem maiores preocupações estéticas, deixando apenas a cadência do compasso da bateria domar os lampejos de um órgão sem maiores desenhos. Talvez a intenção seja amolecer as sensações auditivas do ouvinte para o que viria, como uma preparação aos paraísos artificiais da faixa a seguir.
A Montanha Mágica é uma canção sobre as drogas. O texto parece um apanhado sem sentido de versos que vão se sobrepondo uns aos outros sem muita objetividade, numa clarividência de um suposto efeito entorpecido na estética de construção do poema:
Sou meu próprio líder: ando em círculos
Me equilibro entre dias e noites
Minha vida toda espera algo de mim
Meio-sorriso, meia-lua, toda tarde.
(...)
Ficou o que tinha ido embora
(...)
O que temos é o que nos resta
E estamos querendo demais.
(...)
O mecanismo da amizade,
A matemática dos amantes –
Agora só artesanato:
O resto são escombros.
(...)
Cada criança com seu próprio canivete
Cada líder com seu próprio 38
(...)
Deixa o copo encher até a borda
Que eu quero um dia de sol n’um copo d’água.
O texto é em si plástico. As imagens coladas umas às outras sem muito critério aproximam-se de colagens cubistas ou pelas absurdas associações podem ser lidas pela ótica surrealista. A melodia modorrenta parece se arrastar ao longo dos versos provoca sensação de sonolência ou anestesia durante toda a canção. O refrão, por sua vez, deixa de lado as ilusões ou sugestões das outras estrofes:
Minha papoula da Índia
Minha flor da Tailândia
És o que tenho de suave
E me fazes tão mal
A partir da segunda repetição do refrão, em alguns momentos os versos são declamados sobrepostos por si próprios em mínimo intervalo de tempo, o que provoca quase um eco do que está sendo dito. Este recurso acentua ainda mais a embriaguez que domina toda a faixa. Ao final do texto, uma guitarra sem muito sentido desponta em meio à melodia até restar somente o marulho das ondas. É o fim da primeira parte da peça.
Com o lado B do disco cruzamos a ponte entre a Idade Média e a contemporaneidade através de Teatro dos Vampiros, mas ainda com um pé do outro lado pela introdução do Canon de Pachelbel. Mas pop é pop. O título da música é uma direta referência à novela global exibida na época, Vamp. A canção é o retrato da juventude nos anos 90, pós-ditadura e com uma tremenda crise econômica inflacionando os preços, os juros e as dívidas de toda a população pelo país afora. A falta de perspectiva do futuro e a desilusão brasileira por uma tão sonhada democracia que naufragava num colapso financeiro caracterizam esta faixa como a mais engajada do disco:
Vamos sair – mas não temos mais dinheiro
Os meus amigos todos estão procurando emprego
Voltamos a viver como há dez anos atrás
E a cada hora que passa
Envelhecemos dez semanas.
A faixa seguinte é iniciada por gritos na platéia característicos de um registro ao vivo. É a porta de entrada para a seqüência de hits que a Legião Urbana pretendia emplacar: Sereníssima, Vento no litoral e O mundo anda tão complicado. É a razão de estarem dispostas uma após a outra. O que assombrou o grupo foi o inesperado gosto popular de Teatro dos Vampiros, por achar política demais. Também esta trinca – que se tornou um quarteto – não poderia participar do lado A do disco, por todo o conceito já citado anteriormente. Na verdade, a intenção do grupo era lançar um álbum duplo com jeitão de ópera-rock, apenas com músicas inéditas executadas em estúdio e ao vivo.
Como não foi possível, a sexta canção tem todo o ambiente de show. Gritos, assobios, a banda animadíssima e entrando num compasso muito rápido fez com que Sereníssima, também assim conhecida a cidade de Veneza na época do Renascimento, numa felicíssima coincidência com o conceito de “V”, segundo Renato Russo confessara no Acústico MTV, se tornasse a faixa mais alto astral do disco.
O paradisíaco Vento no litoral e o metropolitano O mundo anda tão complicado tratam do relacionamento amoroso como poucos compositores pop conseguiram fazer, além de Renato Russo: a sensação de vazio e o desapego à materialidade do cotidiano. O disco estava nas graças do público.
L’ Âge D’or, ou a Idade do Ouro, é o posfácio do álbum. É como o comentário final de toda a jornada percorrida. Como era de intenção de Renato Russo de “V” ser executado ininterruptamente por todas as faixas, este último capítulo é a retomada de todos os temas apresentados, desde a Idade Média até os dias contemporâneos.
Ah, ainda tem Come share my life, canção folclórica americana. Bem, é a ilustração da última capa.
* * *
(Um post scriptum dispensável)
Levei algumas horas de duas madrugadas para concluir este texto. São apenas comentários que não devem ser levados a sério. Mas não deixa de ser curioso o fato de sentir vagamente o cheiro embolorado de uma fita cassete Basf (com um V rabiscado de caneta azul sobre a etiqueta branca) girando no par de engrenagens de um Gradiente antigo e eu rachando a ponta dos dedos nas cordas de nylon no violão de meu pai, tentando “malemá” acompanhar os acordes de cada música do disco.
Eh, vida. Deixa prá lá.
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