quinta-feira, 7 de junho de 2012

O silêncio provocador de Albert Camus


por Luciano Melo

“Hoje minha mãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo. ‘Sua mãe falecida. Enterro amanhã. Sentidos pêsames’. Isto não quer dizer nada. Talvez tenha sido ontem”.
Assim começa O Estrangeiro (1942), breve romance do escritor argelino Albert Camus. O relato é contado pelo próprio protagonista (Meursault), um escriturário que mora num minúsculo apartamento em Argel, cercado de vizinhos tediosos que não escapam ao voyerismo do narrador. Neste pequeno bairro suburbano, é através da personagem que conhecemos os elementos que constituem o ambiente escaldante de dias e noites argelinos, como o bonde, a tabacaria, a adega e o cinema. Tudo é descrito de uma maneira muito impessoal. Os olhos indolentes que passam e revelam o apático cotidiano deste organismo funcional da vida urbana são os mesmos que descrevem o banal assassinato de um árabe, executado por Meursault, sob um sol escaldante numa praia nos arredores da capital da Argélia. A segunda parte do livro é relatada de dentro da prisão, em que nossa personagem aguarda o veredicto e questiona-se do motivo que o levou ao crime tão vulgar. Mas não há motivo para o disparo de quatro balas, à queima-roupa. Há apenas fatos.
Fatos que vão se sucedendo ao longo da história, somando-se à ordinária vida de um escriturário que vive sozinho num apartamento da periferia de Argel e que passa as horas de folga observando o cotidiano (não menos ordinário) das pessoas que também moram no prédio. Neste relato, tudo é trivial: a morte da mãe, o dia-a-dia da cidade, o trabalho burocrático, o cigarro e o vinho na sacada, o desejo de casamento da namorada, o assassinato do árabe e os dias na prisão.
Para quem ainda não tenha lido o romance, estes sucintos comentários sugerem uma síntese da escrita camusiana no livro: um estilo seco, sem rodeios de idéias e desprovido de prolixos textuais. Em princípio, tudo ocorre sem a intromissão do narrador-personagem nos lances que compõem a narrativa, pois ao acaso cabe a série de elos que encadeiam a trama. Para tanto, a linguagem do texto também percorre esta mesma linha ontológica de criação: o escritor recusa-se em infringir o andamento diacrônico da obra, para posicionar o leitor como um voyeur do cotidiano do protagonista, no espaço temporal entre a morte da mãe e a sentença do assassinato.
Neste sentido, Camus acerta em cheio ao colocar o próprio Meursault como o narrador de todo o caos, pois é a partir deste olhar que o relato torna-se cada vez mais íntimo e singular. A vida enclausurada dos moradores nos blocos dos apartamentos assemelha-se a dos idosos que não trocam uma palavra sequer durante o cortejo da mãe no asilo, ou a dos presidiários que se dividem nas celas pelos corredores da prisão. A incomunicabilidade entre estes pares talvez seja a maior aproximação que a personagem faz entre a vida em liberdade na cidade e a presa na cadeia. Ou a ordem dos fatores não altera o produto? O contato com as pessoas passa, então, a ser firmado pelas conveniências sociais que se exige no momento. As palavras tornam-se lacônicas e dispensam devaneios discursivos e/ou subjetivos: podem ser apenas profissionais do advogado de defesa, jurídicas do promotor público, ou habituais do capelão, horas antes da execução. Somente conveniências.
Mas o abusado trecho inicial de O Estrangeiro ainda ecoa para esta resenha boa parte de todo o enredo da narrativa. Retomemos a ele. O narrador, sem nenhuma cerimônia emotiva aparente, revela-nos que sua mãe está morta. Hoje ou ontem, não sabe bem. Tomamos ciência de que a notícia foi dada por um telegrama do asilo, com a peculiar aspereza textual deste tipo de comunicação. Mesmo assim, após transcrito o conteúdo e revelado o teor da mensagem, o narrador está lá, estéril de sensações, ainda duvidoso da data correta do falecimento da mãe. Hoje ou ontem? Já não importa. A provocação está lançada.
A economia discursiva do telegrama é a ponte para o trato de Camus com o relato. A linguagem é cortante, rápida e certeira como uma lâmina, e as palavras não revelam o esmerilho da ostentação e do desperdício de vocábulos: o que vale aqui é atingir o leitor com um vôo rasante e preciso. O corte é ácido e provocante, como descobrir-se estrangeiro em seu próprio mundo.
Só para não deixar escapar, uma “pitadinha pop” sobre o livro: Killing an Arab, do The Cure, teve inspiração em O Estrangeiro.

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