por Luciano Melo
Os últimos minutos são estarrecedores. Num plano aéreo, a
câmera acompanha uma fila de camburões que avança o terreno acidentado de uma
floresta branca. Em certo momento, o trilho é dobrado por outros camburões que
parecem retornar do destino daqueles que seguem adiante. Tudo é muito frio e
silencioso. Num corte, estamos no interior de um dos automóveis. A carroceria é
ocupada por rostos gélidos e pálidos, menos pela temperatura do que pelo fim
previsto. A irregular estrada que se forma entre as árvores não influencia de
modo algum a fisionomia ou a postura dos passageiros, petrificados ao fim que
se aproxima. A câmera então, em close up, vai enquadrando um crucifixo preso à
mão de um dos ocupantes. O terço talvez seja o único objeto "animado"
em cena. Estremecido pelos solavancos do veículo, o Cristo parece se contorcer
(em uma espécie de convulsão) à desgraça traçada pela humanidade. Chegamos a um
terreno repleto de tratores, que incessantemente cavam e cobrem valas imensas e
profundas. Covas comunitárias. Um a um, os prisioneiros são arrancados das
camionetas. Em alguns, o terror na feição; em outros, a complacência de não
poder escapar à consumação. Um tiro acima da nuca e o despejo nas valas. O fim.
Amontoados, os corpos depois são cobertos por tratores. Novamente a câmera
parte para o enquadramento. Os rostos dos cadáveres são socados pela terra.
Percorremos quase toda a trincheira, parecendo procurar ainda algo. Um braço
está erguido, esprimido por tantos corpos. Nos dedos, o mesmo crucifixo que se debatia
entre os dedos do prisioneiro polonês. Agora está paralisado. O Cristo ainda
permanece visível, mas paralisado. Até o derradeiro golpe de terra que o faz
desaparecer.
***
Katyn é nome da macabra floresta forrada de neve e do trabalho do veteraníssimo Andrzej Wajda. É o relato dos anos 1939-45,
em que a Polônia esteve ocupada pelas forças nazista e soviética, duas das
principais nações bélicas da Segunda Guerra Mundial. Refém do Pacto
Germânico-Soviético, o solo polonês é invadido nos flancos oeste e leste pelas
potências Alemanha e União Soviética, respectivamente. Espremido entre as armadas
esmagadoras de Adolf Hitler e Josef Stalin, o filme revela incessantemente o
massacre nos dois lados da mesma moeda: o civil, de maioria judaica, incluindo
a capital Varsóvia, dizimado pelas tropas alemãs; e o militar, executado pelo
exército soviético. O retrato desesperançoso do território polonês é talvez a
tônica do filme. Não há uma gota de alegria e por mais que ainda o espectador
seja levado a acreditar numa possibilidade de salvação, ela é logo exterminada
por imagens que não apenas chocam, mas emudecem a alma.
É inevitável comparar Katyn com O Pianista, do também
excepcional Roman Polanski (aliás, junto com Wajda, os dois únicos cineastas
poloneses que conheço), em que a Polônia, como protagonista, é o palco da
desgraça. Mas, colocados em tábua de observação, ainda a tragédia é mais
latente em Katyn, quase documental de tão próximo da realidade. E se dói tocar
na ferida, expô-la em carne viva parece entorpecer os sentidos. Somos
apresentados ao massacre stalinista, que parece acobertado à imensa tirania
hitleriana, mas que não deveria ser. Após a queda do nazismo, os anos ainda em
que os soviéticos permaceram em solo polonês foram de uma genuína e
desavergonhada falácia, demonizando apenas as tropas alemãs e seu terrível
comandante das atrocidades cometidas na Polônia, numa execrável censura a quem
se opusesse a tal ludibriação.
Mais do que mais uma obra sobre a II Guerra Mundial, Katyn é
o requiém do povo polonês, dos antepassados aos dias atuais. A missa fúnebre de
uma chaga que ainda levará muitos anos para cicatrizar - se é que é possível.
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