sexta-feira, 1 de junho de 2012

A Segunda Guerra Mundial segundo Andrzej Wajda


por Luciano Melo

Os últimos minutos são estarrecedores. Num plano aéreo, a câmera acompanha uma fila de camburões que avança o terreno acidentado de uma floresta branca. Em certo momento, o trilho é dobrado por outros camburões que parecem retornar do destino daqueles que seguem adiante. Tudo é muito frio e silencioso. Num corte, estamos no interior de um dos automóveis. A carroceria é ocupada por rostos gélidos e pálidos, menos pela temperatura do que pelo fim previsto. A irregular estrada que se forma entre as árvores não influencia de modo algum a fisionomia ou a postura dos passageiros, petrificados ao fim que se aproxima. A câmera então, em close up, vai enquadrando um crucifixo preso à mão de um dos ocupantes. O terço talvez seja o único objeto "animado" em cena. Estremecido pelos solavancos do veículo, o Cristo parece se contorcer (em uma espécie de convulsão) à desgraça traçada pela humanidade. Chegamos a um terreno repleto de tratores, que incessantemente cavam e cobrem valas imensas e profundas. Covas comunitárias. Um a um, os prisioneiros são arrancados das camionetas. Em alguns, o terror na feição; em outros, a complacência de não poder escapar à consumação. Um tiro acima da nuca e o despejo nas valas. O fim. Amontoados, os corpos depois são cobertos por tratores. Novamente a câmera parte para o enquadramento. Os rostos dos cadáveres são socados pela terra. Percorremos quase toda a trincheira, parecendo procurar ainda algo. Um braço está erguido, esprimido por tantos corpos. Nos dedos, o mesmo crucifixo que se debatia entre os dedos do prisioneiro polonês. Agora está paralisado. O Cristo ainda permanece visível, mas paralisado. Até o derradeiro golpe de terra que o faz desaparecer.
***
Katyn é nome da macabra floresta forrada de neve e do trabalho do veteraníssimo Andrzej Wajda. É o relato dos anos 1939-45, em que a Polônia esteve ocupada pelas forças nazista e soviética, duas das principais nações bélicas da Segunda Guerra Mundial. Refém do Pacto Germânico-Soviético, o solo polonês é invadido nos flancos oeste e leste pelas potências Alemanha e União Soviética, respectivamente. Espremido entre as armadas esmagadoras de Adolf Hitler e Josef Stalin, o filme revela incessantemente o massacre nos dois lados da mesma moeda: o civil, de maioria judaica, incluindo a capital Varsóvia, dizimado pelas tropas alemãs; e o militar, executado pelo exército soviético. O retrato desesperançoso do território polonês é talvez a tônica do filme. Não há uma gota de alegria e por mais que ainda o espectador seja levado a acreditar numa possibilidade de salvação, ela é logo exterminada por imagens que não apenas chocam, mas emudecem a alma.
É inevitável comparar Katyn com O Pianista, do também excepcional Roman Polanski (aliás, junto com Wajda, os dois únicos cineastas poloneses que conheço), em que a Polônia, como protagonista, é o palco da desgraça. Mas, colocados em tábua de observação, ainda a tragédia é mais latente em Katyn, quase documental de tão próximo da realidade. E se dói tocar na ferida, expô-la em carne viva parece entorpecer os sentidos. Somos apresentados ao massacre stalinista, que parece acobertado à imensa tirania hitleriana, mas que não deveria ser. Após a queda do nazismo, os anos ainda em que os soviéticos permaceram em solo polonês foram de uma genuína e desavergonhada falácia, demonizando apenas as tropas alemãs e seu terrível comandante das atrocidades cometidas na Polônia, numa execrável censura a quem se opusesse a tal ludibriação.
Mais do que mais uma obra sobre a II Guerra Mundial, Katyn é o requiém do povo polonês, dos antepassados aos dias atuais. A missa fúnebre de uma chaga que ainda levará muitos anos para cicatrizar - se é que é possível.

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